28-9-2012
NO MEIO SÉCULO DA ORQUESTRA GULBENKIAN
"MEMÓRIAS" DE UM ORGANEIRO PORTUGUÊS, QUE
TRABALHOU COMO ENCARREGADO DA ORQUESTRA GULBENKIAN EM 1970 A 1980, ATÉ SE
“REFUGIAR” NA AUSTRÁLIA QUE O ACOLHEU E LHE DEU O VALOR MERECIDO, E ONDE SE
SENTIU REALIZADO PROFISSIONALMENTE, TENDO-SE APOSENTADO EM 2011 COM 72 ANOS DE IDADE, TENDO OCUPADO UM LUGAR DE PRESTÍGIO EM SYDNEY
A MINHA
“PASSAGEM” PELA FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN, EM LISBOA
Em 1964 estava a Fundação à procura de alguém
com aptidão para dar assistência aos Órgãos de Tubos em Portugal, após a
aquisição do novo órgão para a Catedral de Lisboa, e previsto o restauro de
órgãos históricos em Portugal. Nesse tempo não havia ninguém com capacidade de
o fazer.
Um dia fui abordado por um funcionário do
Conservatório de Música do Porto, que eu havia frequentado, que tendo
conhecimento do meu trabalho em pianos, órgãos e harmónios, me perguntou se eu
estaria interessado numa Bolsa de estudo para a especialização no estrangeiro,
em órgãos de tubos. Não perdi essa grande oportunidade, e fui então apresentado
à senhora D. Ofélia Diogo Costa, pessoa muito conceituada no meio musical
Portuense e da Fundação, que depois de me conhecer, foi com entusiasmo que deu
conhecimento para Lisboa, que tinha encontrado quem reunia todas as condições
necessárias e estaria interessado naquela especialização.
Aproveitando a passagem por Lisboa do senhor
Flentrop, da fábrica de órgãos na Holanda e com quem a Fundação estava
envolvida, tive uma entrevista com ele, tendo sido aceite todas as condições
exigidas para essa Bolsa, e marcado o começo da minha “aprendizagem” na sua
fábrica.
Durante os 5 anos de especialização na
Holanda, passaram pelas minhas mãos o restauro do órgão da Sé de Évora, e dos
dois órgãos históricos da Sé do Porto. O órgão do Grande Auditório, teve na sua
construção a maior comparticipação do meu trabalho, sendo eu também o
responsável pelo sistema eléctrico que dele faz parte.
A sua instalação no local onde se encontra e
para o qual havia sido desenhado, foi feita sobre a minha orientação, assim
como na sua conclusão assisti à intonação e afinação final, executada pelo
principal dessa especialidade, da Flentrop, e com quem previamente eu havia
trabalhado durante o tempo que me foi estipulado.
* * * * *
No início de 1970, após a conclusão da Bolsa e
dos órgãos da Sé do Porto, meu último trabalho como bolseiro, fui admitido como
funcionário do Serviço de Música, onde fui integrado como organeiro, e me foi
dada também como tarefa nos tempos livres, o cargo de Encarregado da Orquestra
Gulbenkian, em conjunto com o respectivo Arquivo Musical.
Os tempos livres eram aqueles que não colidiam
com as afinações e manutenção dos órgãos ao meu cuidado, novos e restaurados,
assim como nas desmontagens e montagens dos órgãos que iriam ser restaurados
fora do País, conforme os acordos estabelecidos com a Gulbenkian.
Os trabalhos relacionados com órgãos,
ocupariam em média nessa altura, uns 4 a 5 meses por ano, sendo os restantes 7
a 8 meses ocupados com a Orquestra. Isto até 1974, vindo a minha situação a ser
alterada pelos acontecimentos resultantes do 25 de Abril, quando me foi imposto
que exercesse apenas uma das tarefas, neste caso a de maior percentagem em
tempo, ou seja, ter de trabalhar unicamente com a Orquestra.
Esta situação manteve-se até ao final de 1979,
quando tendo eu sido admoestado por defender a propriedade da Fundação, me
indignei e aproveitei a oportunidade de continuar a minha vida profissional de
organeiro, na Austrália.
Durante o tempo que trabalhei com a Orquestra,
tive bons e maus momentos, quando tive de lidar com alguns dos seus
instrumentistas de fraco carácter e pretensiosos, que tentaram sem no entanto o conseguirem, que eu fosse um
serviçal à sua disposição.
Outros, possuidores de dignidade profissional
e humana, compreendendo o trabalho ingrato que eu tinha entre a Direcção do
Serviço e a Orquestra, sempre me trataram condignamente, e franco entendimento,
criando-se um apreço recíproco.
A certa altura, a minha relação com o
Administrador do Pelouro da Música tornou-se crítica, quando me recusei a dar
informações sobre o que se passava no meio da Orquestra, uma vez que o que ele
pretendia saber sobre a Orquestra, nada tinha a ver com a actividade
profissional. Como resultado da “falta de colaboração”, o ter sido recusado o
meu pedido de regresso à minha profissão, não só referente aos órgãos, mas a
cravos também.
Posteriormente quando me foi considerada essa
possibilidade, era já tarde demais. Eu estava comprometido com a firma
australiana empenhada no meu trabalho, e que já tinha tratado de toda a
documentação para a emigração.
Devo acrescentar que antes de finalizar a
licença sem vencimento pelo período de um ano que me havia sido concedida, dei
a conhecer à Fundação que estaria disposto a regressar ao meu trabalho
específico nos órgãos em Portugal, como reconhecimento e gratidão pelo que a
Fundação tinha dispendido comigo e com minha família durante a Bolsa, se me
fosse prorrogada por mais outro ano a licença sem vencimento, tempo esse que eu
necessitava para recuperar o tempo perdido da minha profissão, nos 5 últimos
anos de trabalho com a Orquestra.
Infelizmente ou Felizmente, essa concessão não
foi considerada, e em contrapartida foi dada outra Bolsa a quem não possuía a
mesma preparação e conhecimento. Simplesmente inacreditável, o que demonstra o
pleno desprezo por quem com dignidade e lealdade não quis trair os colegas,
fornecendo informações privadas de que poderia ter conhecimento, e que com o
seu trabalho honesto e competente, dedicação, profissionalismo e lealdade,
tinha servido aquela Fundação.
O começo do meu trabalho com a Orquestra, não
foi de difícil adaptação, pois contei sempre com o apoio do então Director
Artístico, o maestro Werner Andreas Albert que sem qualquer snobismo ou comprometimento
para sua dignidade e posição artística, muitas vezes me ajudou nos trabalhos da
colocação da Orquestra, quando muitos dos instrumentistas se recusavam a
fazê-lo.
Sempre fiz o meu trabalho com
responsabilidade, eficiência e dignidade, sem esquecer a gratidão que tinha
para com a Fundação, e especialmente na pessoa da saudosa Directora do Serviço
de Música, Dra. Maria Madalena de Azeredo Perdigão, por quem fui apreciado, e
que viria a ser “saneada” pelos oportunistas da época “progressista” do 25 de
Abril.
Ao seu sucessor, Dr. Luís Pereira Leal,
devo-lhe a sua percepção pela ingrata tarefa que eu tinha com a Orquestra, e
tenho a agradecer-lhe a confiança que depositava em mim, dando lugar a uma
estima recíproca.
Posso aqui mencionar um episódio entre muitos
outros, que poderá justificar essa confiança merecida:
Numa Semana Santa em que estava programado e
anunciado um Concerto no Mosteiro da Batalha, com o Coro e Orquestra
Gulbenkian, este esteve na iminência de à última hora ser cancelado, porque o
pessoal que na Fundação estava encarregado do transporte e montagem dos
estrados para acomodação dos coristas, se recusou a trabalhar por se
encontrarem com direito a folgar nessa Quinta-feira Santa. Decisão tomada na
véspera do Concerto anunciado. Direitos adquiridos e aprovados naquela ocasião
pelas Comissões de Trabalhadores e Sindicatos.
O Director do Serviço de Música, e como tal,
responsável pelo evento então comprometido, acedeu e confiou plenamente em mim,
quando me prontifiquei e tomei o compromisso e responsabilidade para viabilizar
esse Concerto, salvaguardando uma situação embaraçosa da qual não só seria
prejudicial para toda a organização desse Concerto, como seria uma falta de
respeito para com Público, implicando desnecessariamente o nome da Fundação
Calouste Gulbenkian.
Com a ajuda de trabalhadores da Câmara da
Batalha, que nesse próprio dia do Concerto, logo de manhã cedo estava com uma
camioneta na Fundação, fez-se o
transporte de todo o material e instrumentos. Às 3 horas da tarde, chegada a
Orquestra e o Coro, tudo estava pronto para começar o ensaio geral de
colocação.
Para que tal fosse possível, o Encarregado da
Orquestra não se importou de “comprometer o seu prestígio ou dignidade” quando
trocando a sua roupa por um fato macaco, ajudou na carga e descarga de todo
aquele material, e na montagem dos estrados, a par do pessoal camarário para o
efeito ali disponível.
Talvez por esta e muitas outras actividades
executivas que eu exerci, por na Holanda ter aprendido a trabalhar e perder
aquele snobismo tão patente nos portugueses, tenha merecido a consideração e
estima daqueles que em mim confiaram.
A minha frustração profissional como organeiro
e a insatisfação de me sentir injustiçado, estava a levar-me a um estado
crítico de depressão, o que só terminou quando eu em vésperas de deixar a
Fundação, já com o Passaporte de Emigrante e Vistos de entrada na Austrália
para mim, minha esposa, duas filhas e um filho, de 17, 11 e 5 anos, estava
preparado a deixar o País no dia seguinte, se tal fosse possível.
Apanhado de surpresa, o Dr. Pereira Leal
quando lhe dei conhecimento da minha intenção, não me deixou realizar os meus
intentos, sem que para isso ele obtivesse para mim, uma licença sem vencimento
que garantisse o meu retorno à Fundação, continuando assim o meu emprego, caso
por qualquer motivo, até familiar, me visse obrigado a regressar a Portugal.
Esta atitude jamais poderei esquecer e de lhe estar reconhecido.
* * * * *
Desde
que cheguei à Austrália, já lá vão mais de 32 anos, sinto-me recompensado por
tudo aquilo que o meu País me negou, e onde poderia ter perdido inclusivamente
a saúde, devido à injustiça e à frustração profissional.
Aqui fui acolhido com dignidade e apreço,
sendo-me oferecido o que o meu País não me quis dar, desperdiçando uma pequena
fortuna na minha preparação.
Naturalizei-me em reconhecimento ao País que
me deu a oportunidade de trabalhar e viver dignamente, de educar os meus filhos,
proporcionando-lhes as suas formaturas, para que possam desfrutar de uma vida
cómoda e feliz, assim como a todos os meus netos. Com a graça de Deus, todos
nós bem sucedidos.
Presentemente com 74 anos, aposentado aos 72
mas sem pensão do Governo, posso dizer que vivo desafogadamente, sem luxos mas
confortável, fruto das minhas economias resultantes do árduo e honesto trabalho
durante 32 anos, empenhando-me em garantir a minha pensão de sobrevivência, ao
contrário daqueles que nada fizeram, mendigando agora a sua modesta ou
insuficiente pensão e sujeitos a um apertado controlo fiscal.
De Portugal, a terra onde nasci, tenho as
minhas raízes, família e amigos, sinto Saudade da Juventude, da Educação e
Formação que recebi, e a tristeza de ter de assistir ao estado caótico em que
se encontra.
Manuel SARAIVA DA COSTA
Sydney, 28 de Setembro de 2012.
* * *
* *
Lista de alguns dos nomes que ainda me
recordo, de colegas com quem trabalhei e que mereceram a minha simpatia,
respeito e amizade.
Serviço de Música:
Dra. Maria Madalena Perdigão, Directora
Dr. Luis Pereira Leal, Diretor
D. Fernanda Mascarenhas, Secretária da Direcção
Dra. Maria da Graça, Assistente de Direcção
Dr. Ferreira Martins, Tesouraria
António Cardoso, Tesouraria
Hélder Fernandes, Secretaria
Madalena Bravo, Secretaria
E outros de quem o nome não me recordo.
Orquestra:
Elias Arizcuren (violoncelista)
Maria Macedo (violoncelista)
José L.Corral Arteta (violinista)
António Ferreira (contrabaixista)
Ricardo Ramalho (1o. flauta)
Otílio Martins (1o. fagote)
Júlio Campos (tímpanos)
Emídio Coutinho (trombone)
Uns quantos mais nos naipes das cordas e
sopros, cujos nomes de momento não me ocorrem.
AGORA RESTA A ESPERANÇA DE QUE UM DIA TODOS
AQUELES, SEM EXCEPÇÃO, QUE COLABORARAM COM A ORQUESTRA GULBENKIAN DESDE O SEU
INÍCIO EM 1962, POSSAM FAZER PARTE TAMBÉM DA SUA HISTÓRIA. NÃO SÓ O PESSOAL
ARTÍSTICO, COMO TECNICO E ADMINISTRATIVO.
50 ANOS É UM PERÍODO RELATIVAMENTE RECENTE PARA PODEREM SER PESQUISADOS
TODOS OS DADOS NECESSÁRIOS. NO ARQUIVO DA ORQUESTRA, DEIXEI DOCUMENTAÇÃO
REFERENTE AO TEMPO QUE ESTEVE A MEU CARGO E RESPONSABILIDADE